Magalhães-Vilhena:

«A práxis material<br> é o fundamento último da racionalidade»

Eduardo Chitas

1. Si­nais

Uma in­vulgar te­na­ci­dade no tra­balho, um es­tilo de vida frugal e dis­ci­pli­nado, um humor pronto a rir com es­pí­rito, não poucas vezes cáus­tico, uma cu­ri­o­si­dade des­perta muito para além do seu ofício, uma cons­tância de con­cep­ções onde ti­nham as­sento na­tural a in­for­mação nova, o avanço ci­en­tí­fico e a es­pon­ta­nei­dade au­to­crí­tica, uma fi­gura fran­zina de modos afá­veis, - eis al­guns dos si­nais de re­co­nhe­ci­mento do ser hu­mano con­creto que foi Vasco de Ma­ga­lhães-Vi­lhena, além disso co­mu­nista, in­ves­ti­gador, pro­fessor, homem de ci­ência, pu­bli­cista, es­tu­dioso de Marx e de Lé­nine, cuja obra tra­ba­lhou a fundo.

Com quase in­génua sim­pli­ci­dade, já sep­tu­a­ge­nário, ele pró­prio dizia de si: his­to­ri­ador das ideias. Acon­teceu que os que co­nhe­ciam de perto o con­junto dos seus es­critos se te­nham per­mi­tido, olhos nos olhos, «rec­ti­ficar» num dos sen­tidos que lhe eram caros: - his­to­ri­ador so­cial das ideias, Vasco, porque as ideias, nos teus tra­ba­lhos, não se des­vin­culam dos qua­dros so­ciais onde se in­serem, das raízes so­ciais onde se ori­ginam, das forças so­ciais e dos in­di­ví­duos que as for­mulam, as fazem suas, as de­sen­volvem ou trans­formam. Dessa vez apenas sorriu.

E poder-se-ia então ter acres­cen­tado: - ideias há que tão-pouco se se­param da­queles que por­fi­a­da­mente as com­batem ! Mas tudo isso, para ele, era ter­reno por de­mais co­nhe­cido. Me­lhor: ter­reno tor­nado fa­mi­liar por muitos anos de ex­pe­ri­ência e de in­can­sável pes­quisa.


2. Prá­tica so­cial

Sem esta ra­di­cação so­cial e, em úl­tima aná­lise, sem esta raíz de classe la­tente ou ma­ni­festa em es­sen­ciais re­pre­sen­ta­ções de cons­ci­ência, não se com­pre­en­deria a tão forte in­ci­dência da prá­tica - di­mensão ma­te­rial e ca­te­goria teó­rica - nas aná­lises so­ciais con­cretas de Ma­ga­lhães-Vi­lhena, desde a Ci­dade an­tiga à crise da ide­o­logia bur­guesa, desde o pen­sa­mento téc­nico e ci­en­tí­fico na An­ti­gui­dade à gé­nese do ide­a­lismo fi­lo­só­fico de An­tónio Sérgio. No sen­tido uno e múl­tiplo de práxis ma­te­rial, de práxis so­cial, de ac­ti­vi­dade cons­ci­ente dos ho­mens, de as­si­mi­lação e apro­pri­ação prá­tico-es­pi­ri­tual do mundo, «a um tempo trans­for­mação, com­pre­ensão e cri­ação cons­ci­entes, ra­ci­o­nais, ob­jec­tivas, da re­a­li­dade ma­te­rial»(1), a prá­tica não tem menor in­ci­dência na linha me­to­do­ló­gica, his­tó­rico-crí­tica e, em certa me­dida, heu­rís­tica, dos es­critos de Ma­ga­lhães-Vi­lhena onde se ocupa de Francis Bacon, Hegel ou Feu­er­bach e, prin­ci­pal­mente, de Marx, En­gels ou Lé­nine.

Uma as­serção la­pidar, for­mu­lada como re­sul­tado e não como axioma de par­tida, chama e con­centra aqui a atenção. É esta : «A práxis ma­te­rial é o fun­da­mento úl­timo da ra­ci­o­na­li­dade» (p. 338). É la­bo­rioso mas rico de con­teúdo o per­curso que nessa tese liga os dois ex­tremos: práxis ma­te­rial e ra­ci­o­na­li­dade. Com certo risco, não julgo im­pos­sível nem inútil pro­curar re­cons­ti­tuir re­su­mi­da­mente esse ca­minho.


3. O im­passe do ide­a­lismo

Co­me­çando por aludir aos novos pro­blemas da ob­jec­ti­vi­dade, da ra­ci­o­na­li­dade e das re­la­ções entre o saber e o pro­cesso prá­tico da vida hu­mana, tais como os ex­pu­sera em 1968 o fi­ló­sofo mar­xista che­cos­lo­vaco Jin­drich Ze­leny, e dando o seu apoio às po­si­ções deste, Ma­ga­lhães-Vi­lhena faz do do­cu­mento dei­xado em ras­cunho pelo jovem Marx e co­nhe­cido por «Teses sobre Feu­er­bach» o con­texto ini­cial:

«Marx cons­tata o im­passe a que no seu tempo che­gara o ide­a­lismo, faz um ba­lanço crí­tico e aponta uma saída para a crise» (p. 321).

O im­passe: o ide­a­lismo «fica in­tei­ra­mente do lado ideal do mundo» porque o mundo das ideias é o seu reino e para lá trans­porta ele o real ma­te­rial (p. 322).

O ba­lanço crí­tico: em­bora já não à ma­neira do ide­a­lista Hegel, também Feu­er­bach «de certo modo se mantém no in­te­rior do cír­culo de pen­sa­mento ide­a­lista, não tendo al­can­çado rompê-lo» (p. 323). En­vol­vendo, porém, um im­plí­cito e largo es­pectro de dou­trinas do ide­a­lismo clás­sico, as «Teses», em par­ti­cular a 11.ª, «são di­ri­gidas contra a con­cepção con­tem­pla­tiva da te­oria (...). São di­ri­gidas contra o ideal do pri­mado ab­so­luto da te­oria pura» (p. 327).

A saída da crise: As «Teses» estão «ori­en­tadas no sen­tido da ela­bo­ração da «face ac­tiva» do novo ma­te­ri­a­lismo - o ma­te­ri­a­lismo prá­tico. Neste sen­tido, im­plicam a apro­pri­ação e a re­e­la­bo­ração crí­tica do pro­cesso de co­nhe­ci­mento, ela­bo­rada e de­sen­vol­vida uni­la­te­ral­mente pelo ra­ci­o­na­lismo ide­a­lista(...)» (p.327). En­tre­tanto, «uma nova ra­ci­o­na­li­dade, uma nova prá­tica ra­ci­onal nasceu com a crí­tica de Marx e En­gels à razão es­pe­cu­la­tiva», pois que os fun­da­dores do mar­xismo vêem na práxis so­cial ma­te­rial e na com­pre­ensão dessa prá­tica «o fun­da­mento do novo ra­ci­o­na­lismo, o ra­ci­o­na­lismo ma­te­ri­a­lista» (pp. 322-323).


4. Des­con­certo do mundo

A saída da crise, porém, é a en­trada numa re­vo­lução do pen­sa­mento. Não é pouco, mas por ora é só isso. Di­ante dessa re­vo­lução des­ponta um mundo novo que luta por sair das en­tra­nhas do mundo velho de todas as opres­sões. Para trás, ficou a his­tória mi­lenar das for­ma­ções so­ciais onde ga­nharam e con­ti­nuam a ga­nhar raízes as duas ori­en­ta­ções fun­da­men­tais da fi­lo­sofia, nas suas va­ri­antes e formas de pen­sa­mento nu­me­rosas, _ o ma­te­ri­a­lismo e o ide­a­lismo.

Uma ex­pres­siva abre­vi­ação do pro­blema, re­ti­rada de uma carta do jovem Marx (de Se­tembro de 1843), serve de epí­grafe ao es­crito de Ma­ga­lhães-Vi­lhena. Diz ela: «A razão sempre existiu, só que não sempre na forma ra­ci­onal».

Em co­men­tário livre, isso pode sig­ni­ficar: o des­con­certo do mundo real conduz ao mundo às avessas do ide­a­lismo na po­lí­tica, no di­reito, na re­li­gião, na fi­lo­sofia. Mas o de­ter­mi­nante é o resto. Daí que outra etapa no ca­minho aberto pelas «Teses» seja evi­den­ciada por Ma­ga­lhães- Vi­lhena com os «Ma­nus­critos eco­nó­micos de 1857/​58», de Marx: «Como Marx de­mons­trou em pá­ginas de rara den­si­dade (...), na aná­lise do pro­cesso socio-eco­nó­mico cumpre tratar em pri­meira linha da pro­dução ma­te­rial» (p. 328).

A pri­meira linha é a crí­tica da eco­nomia po­lí­tica do ca­pi­ta­lismo, pela qual, to­davia, Ma­ga­lhães-Vi­lhena não faz passar di­rec­ta­mente, nos li­mites deste es­tudo, a li­gação entre práxis ma­te­rial e ra­ci­o­na­li­dade. Re­en­con­tramos essa li­gação nou­tros si­nais de ba­li­zagem, que pro­curo agora des­tacar da mancha com­pacta do texto:

- no tipo de ra­ci­o­na­li­dade «que ca­rac­te­riza es­pe­ci­fi­ca­mente o ra­ci­o­na­lismo ma­te­ri­a­lista de Marx, de En­gels e de Lé­nine», para os quais «a te­oria é um mo­mento es­sen­cial no pro­cesso da práxis» (p. 323);

- na «so­lução das con­tra­di­ções teó­ricas (...) por uma forma prá­tica, me­di­ante a energia prá­tica dos ho­mens», como es­cre­vera o jovem Marx nos «Ma­nus­critos» pa­ri­si­enses de 1844;

- no con­tri­buto de Lé­nine, pe­rante novas ur­gên­cias teó­rico-prá­ticas (por exemplo, em 1908), para a cla­ri­fi­cação da ca­te­goria fi­lo­só­fica de ma­téria; pri­meiro, a pro­pó­sito de um ar­tigo de Jo­seph Di­etzgen, ope­rário e teó­rico par­ti­dário de Marx; de­pois, em Ma­te­ri­a­lismo e em­pi­ri­o­cri­ti­cismo; na minha opi­nião, há que ler de­ti­da­mente as pp. 332-336 do es­crito de Ma­ga­lhães-Vi­lhena, para o en­qua­dra­mento da for­mu­lação de Lé­nine aí ci­tada : «a noção de ma­téria em gno­se­o­logia (...) não sig­ni­fica mais do que: a re­a­li­dade ob­jec­tiva, exis­tente in­de­pen­den­te­mente da cons­ci­ência hu­mana e re­flec­tida por esta» (p. 333);

- na re­a­pre­ci­ação final das «Teses», agora si­tu­adas em mais vasto e apro­fun­dado âm­bito do que a re­vo­lução de pen­sa­mento que foi de­ci­sivo ponto de par­tida.

Através de uma sequência de enun­ci­ados novos ou com­pre­en­didos sob fo­cagem nova, Ma­ga­lhães-Vi­lhena re­ca­pi­tula e pro­gride ao mesmo tempo. A in­versão ma­te­ri­a­lista da fi­lo­sofia, cujo fio con­dutor se acha «na práxis hu­mana e na com­pre­ensão ra­ci­onal dessa práxis» (p. 336), fez da ra­ci­o­na­li­dade marx-en­gel­siana «uma ra­ci­o­na­li­dade aberta aos pro­blemas novos que emanam de uma práxis con­creta sempre re­no­vada e sempre nova» (p. 338). Isso, pre­ci­sa­mente isso, con­fere a esta o ca­rácter de «fun­da­mento úl­timo» da­quela ra­ci­o­na­li­dade.

A con­cluir: de­certo, como úl­tima ins­tância, a prá­tica so­cial ma­te­rial é por sua vez o in­verso da mera aco­mo­dação ao curso do mundo e da his­tória. Para os que se re­co­nhecem her­deiros e con­ti­nu­a­dores de Marx, En­gels e Lé­nine, o que há de «sempre novo» na prá­tica con­creta a que se re­fere Ma­ga­lhães-Vi­lhena, sig­ni­fica e exige em todo o campo do pos­sível : que no agir ra­ci­onal em cada frente da eman­ci­pação so­cial se saiba an­tever a ini­ci­a­tiva his­tó­rica que conduz às trans­for­ma­ções con­cretas. É que outro mundo é pos­sível.


(1) «Marx: ra­ci­o­na­li­dade e práxis. Bos­quejo de um pro­blema», in V. de Ma­ga­lhães-Vi­lhena, An­tigos e Mo­dernos. Es­tudos de his­tória so­cial das ideias, Lisboa, Li­vros Ho­ri­zonte, 1984, p. 331. - Todas as re­fe­rên­cias e ci­ta­ções são ex­traídas deste es­tudo.



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